Meu nome é Miguel e o que vou narrar aqui se passou durante dois anos de amizade que, eu diria, foge a todas estatísticas. Até hoje nao entendo como, no meio de tao poucas amizades, pelo fato de eu ser tao seletivo, fui fazer justo esta amizade. Mas, fiz.
Marco, vou chamá-lo de Marco, se tornou meu amigo através de uma namorada que eu tinha e trabalhava com ele. Marco era millenial sociável, engracado, até cativante. Mas, eu mal sabia que ele, além de qualidades também tinha uma "questao".
- Vamos pro pub na quinta?
- Deixa eu ver aqui...sim, to livre na quinta. (já sabia que ir ao pub com ele nao significa apenas algumas cervejas, mas várias!)
Continuei:
- Pra qual pub voce quer ir? O Nelly's?
- Nao, o Black fish.
- Lá é meio contramao pra mim, que tal o Sporty Bar?
- Nao dá também.
Depois fui entender o porque. Marco nao era "bem-vindo" nesses bares, aliás, nao era permitida a sua entrada em 90% dos bares que existiam na nossa linda vila. Nunca me explicou o porque disso, também nunca me interessei em saber o porque. Sei que para vetar a entrada de alguém em um bar é preciso que esse alguém apronte muito. E ele aprontava, como vamos ver.
Marco tinha ao seu lado duas cartas de sorte, dois coringas. Era herdeiro de muita grana e tinha rosto de modelo. E era isso que compensava o fato de ter problemas mentais, se, naquela vila as mulheres eram empoderadas o suficiente pra nao cairem no papo de alguém que só tenha beleza física, ainda nao tinham evoluído o suficiente pra nao cairem no papo de quem tivesse dinheiro. E, como dizia Nelson Rodrigues, o dinheiro compra tudo, até o amor verdadeiro.
Uma noite no pub, eu e Marco jogávamos sinuca e ele apontou para um cara. Eu pensei, "lá vem merda":
- Voce!
O cara olhou desconfiado.
- É, é, voce mesmo!
O cara ainda duvidando.
- Saca só...
Marco segura o taco de sinuca firme com a duas maos e levanta os bracos como se fosse o Bruce Lee iniciando performance com nunchaku. De repente, comeca a fazer uns movimentos e transforma o taco em bastao de kung fu, porém, esse escorrega de sua mao e quase acerta a cabeca do indivíduo. Isso tudo ocorreu depois de umas 4 ou 5 cervejas. Marco, envergonhado, pede desculpas. O cara enfia a mao na cara dele. Somos expulsos do bar. Levo ele pra casa, com o nariz roxo, bebado, desolado. Fico um tempo por lá, ponho uma música, e digo que vou pra casa, afinal tenho que trabalhar no dia seguinte.
Havia essa menina chamada Leticia. Era muito amiga de Marco e vira e mexe saia com ele, quando as coisas nao estavam bem com ele, ela era quem emprestava o ombro amigo. Aliás, emprestava tudo, drogas, cama, comida...Outro dia fomos na casa dela, fizemos uma espécie de roda de violao com mais uns amigos de Letícia. Roda bacana, gente divertida...
- Quer um pouco? Ela me oferece cocaína.
- Nao, nao, brigado. (Respondo naturalmente, nunca usei isso).
- Marco, voce lembra daquela vez que voce correu nu pelas ruas gritando que era um sapo?
- Nao, nao lembro e isso nao aconteceu.
- Eu lembro que voce pulava alto, devia tá a 200km por hora. Foi louco. Chamaram a polícia e tudo.
Marco já tinha sido fichado na polícia. Por stalker. Ficou perseguindo uma ex durante meses, mandando mensagens ameacadoras, indo até a casa dela, enfim.
- Me deixa, po!
- Mas, foi engracado. - Letícia insiste.
Marco dá um tapa na mesa, quebra uma garrafa de uísque e se levanta pra ir embora. Eu vou atrás.
- O que foi cara?
- Vamos pro Black Fish?! Ah, nao posso entrar lá. Vamos pro...
- Cara, daqui eu vou pra casa, quer vir tomar um vinho?
- Pode ser.
Combinamos nesse dia de fazer uma festa na casa dele, próximo ao Natal, tinha de tudo lá, jacuzzi, sauna, bebidas, comidas, só precisava chamar gente.
Outra vez, Marco cismou para mim que queria ser detetive particular, disse que tinha jeito pra estalkear a vida das pessoas. E, adorava a ideia de fazer isso por dinheiro. Eu tentei convence-lo de fazer um curso. Mas, antes disso arrumou um emprego excelente numa empresa gigante. Sua área mesmo era de vendas. Tinha uma lábia como ninguém. Aliás, alem das duas cartas coringas mencionadas acima, essa era a terceira, a forma de persuadir as pessoas. Estava contente com o trabalho, pois ia ganhar uma fortuna. Desnecessário dizer que durou dois meses e foi mandado embora. A mim, ele disse que "se demitiu". Ninguém se demite de um emprego com salário muito bom, a nao ser que voce já tenha outros planos. Ele nao tinha, voltou pra bebida e vida boemia, depressiva. Tomava remédios pra depressao e misturava com alcool. Se tornou um verdadeiro babaca. Suas piadas já nao tinham graca. Quando chegou o Natal chamamos umas 25 pessoas pra casa dele pra fazer a tal festinha. Marcamos antes dessas pessoas irem para minha casa. Quando chegaram, nada do Marco. Esperamos uma, duas horas, ele aparece completamente bebado, nao sei nem como chegou lá em casa. Na cozinha, na frente de todos, pergunta a Marcela, uma menina que havia vindo com amigos meus:
- Posso chupar o seu c*zinho?
Silencio geral na cozinha, todos ouviram isso, todos ficaram com o queixo caído, ela, feminista como toda mulher no início do séc. 21 tem que ser, nao deixou quieto:
- Escuta aqui o seu babaca, eu nao sou sua p*ta nao. Voce vai a merda! Pensando o que?!
Eu converso com a Marcela e tento explicar que ele nao está em condicoes de julgamento. Isso se desenrola por mais uns 5, 10, 15 minutos.
Passado o clima chato, muitos vinhos depois, acabamos nao indo para casa do Marco, pois, como já foi dito, ele estava no "automático", nao havia condicoes, já nao conseguia falar, sequer se mantinha em pé. Letícia, aquela amiga das horas incertas, veio e cuidou dele no sofá. Nesse dia eu tentei algo com a Marcela, estava bebado também, mas nada, era durona mesmo. Ou, pelo menos parecia ser.
Digo parecia ser pois alguns dias depois dessa festa, Marco me liga dizendo que tava saindo com a Marcela. Eu levei dois segundos pra digerir essa informacao:
- Péra, voce tá saindo com aquela menina que vc disse aquela coisa horrível?
- Sim! E digo mais, é uma monstra na cama.
- Kct!
Marco era isso, imprevisível, indiagnosticável, que no meio da bipolaridade tinha um senso de imaginacao incrível:
- Vamos escrever uma história pra roteiro de filme? Eu tenho várias ideias.
- Diga lá, o que voce pensa?
- Algo envolvendo uma conspiracao e um triangulo amoroso.
Nao desenvolvia ideias, tudo era superficial, nao aprofundava, sofria de algum déficit de atencao. Eu tentei pescar:
-Diz aí, o que voce quer escrever?
- Ah, sobre algo que envolva isso que eu disse.
- Sim, voce disse já que tinha ideias, mas nao apresentou nada até agora.
- Eu te falo outro dia. Vamos pro pub?
Estávamos em casa, vendo qualquer coisa na TV, naquele dia ele me disse que havia terminado com a Marcela. Nao durou muito. Nada durava muito na vida desse sujeito. Emprego bom, mulher, pubs que permitiam sua entrada...
Além de mim e da Letícia havia outra pessoa que mantinha regularmente contato com o Marco, era o Francisco. Francisco era intelectual e levava o Marco para passeios gastronomicos, cafés e eventos culturais. Uma vez ele me disse que foi com o Francisco ver a Orquestra Nacional executando Bach - Suite no. 1 em Sol Maior. Casa cheia, Marco disse que foi maravilhoso. Depois de lá foram para um pub e Marco quase saiu na porrada com um cara que tava acompanhado de uma mulher que ele tentou a sorte. Nao havia Bach que libertasse essa alma...
Um dia paramos de falar. Ele havia dormido aqui em casa, no sofá, depois de umas 3 ou 4 garrafas de vinho (isso porque ele já havia vindo pra cá "no grau"), e quando acordei no dia seguinte estava ele de cueca, cambaleando, num rodopio igual a piao em camera lenta, a casa toda suja de vomito e ele lambeu o vomito na minha frente. Eu o botei pra fora! Bastava, nao queria esse tipo de pessoa por perto.
Passaram alguns meses e nao tive mais notícias dele, soube através de amigos que estava namorando e havia mudado pra Croácia. Que fim teve o Marco?
Recebo meses depois um postal dele, perguntando como eu estava, dizendo que havia encontrado sua "alma-gemea".